
A
crassa desonestidade – que se pode chamar eufemisticamente de “falta de ética”
– que nos últimos tempos esquenta o ambiente cultural nacional é prova de que o
Brasil mostra a sua verdadeira cara. O governador que antes foi líder estudantil
encabeçando passeatas, defendeu os sem-terra, agora manda a polícia espancar e
jogar gás em estudantes que fazem passeata; envia tropas de choque para
desocupar “invasões” em propriedades de uma empresa multinacional, ganha pontos
nas pesquisas e provavelmente vai reeleger-se nas próximas eleições.
O
congressista que se elegeu à custa da crescente população evangélica rouba do
erário, promove parentes, enriquece-se com concorrências fraudulentas,
privilegia os amigos e ONG’s evangélicas que recebem polpudas dotações
“sociais” e devolvem comissões ao mesmo, e púlpitos de grandes igrejas lhes são
oferecidos. Ele fala contra os “perseguidores do evangelho” que ousam
apresentar evidências de seu enriquecimento ilícito, e garante que “aquelas
verbas” continuarão vindo. Igrejas e laranjais se igualam.
O
pastor milionário da TV vende seu produto: “Deus tem um plano de salvação para
você, sua família, seus filhos e sua mulher. E você pode usar o credicard da
igreja. Basta pedir o seu, e ir ao seu banco entregar sua oferta”. Jamais será
indiciado por estelionato. Ele “prega o evangelho” enquanto aumenta a conta
bancária da igreja da qual é dono, sem ter que dar satisfações ao Ministério da
Fazenda.
Aliás,
o eleitor evangélico, como os demais, jamais acreditará na responsabilidade
implícita do seu voto. Não acreditará que ao votar deve-se exigir uma atuação
parlamentar pela erradicação da pobreza extrema, da fome e das epidemias
cíclicas; exigir educação completa da alfabetização à universidade; exigir
cuidados com o meio ambiente. Poderia ser consciente de que toda a população de
Marrocos equivale à população brasileira submersa na miséria; que 600
municípios brasileiros, nos 13 bolsões permanentes de miséria e pobreza
extrema, necessitados de água potável, esgotos, escola em mínima qualidade,
saúde pública e que é através do voto que se pode corrigir tudo isso. Será que
interessa?
Aqui,
nesse meio, quanto mais viva a corrupção mais sussurros, boca-miúda, pausas,
silêncios. O corporativismo evangélico exige controle emocional, condena a
raiva, transfere para o além as punições cabíveis; o grito e a indignação são
condenáveis e revelam “ausência de espiritualidade” nos inconformados. São
“sentimentos baixos”, indignos, impróprios para o crente. Não dá pra entender
este país. Ou dá.
Uma
expressão latina, “corruptio optimi pessima est” (a corrupção dos melhores é a
pior) identifica o que geralmente vemos acontecendo, tanto no Congresso
Nacional, nas câmaras legislativas estaduais e municipais, como nas poderosas
denominações evangélicas, ricas de puxar dinheiro com rodo. Sem impostos,
claro.
O
pastor líder da grande denominação é pego com a boca na botija, enriquece a
olhos vistos, vive em luxo ostensivo, seus parentes gozam privilégios salariais
impressionantes, a cúpula da organização eclesiástica ocupa residências
nababescas, tem conta no exterior, não pagam impostos, porque o dinheiro vem da
igreja. A comunidade evangélica silencia. Assume a conivência, compactua com a
corrupção dos que ocupam altos cargos nas denominações, ou daqueles que os
representam no Congresso. Fazer negócios e mercadejar produtos religiosos é
privilégio da religião. É “assunto espiritual”, e estamos conversados. Ademais,
a exaltação, esbravejar contra desmandos, gestos exagerados de inconformismo
não pegam bem para o crente evangélico, diz o pastor no púlpito. Esqueceu que o
silêncio trai mais a culpa do que a inocência. “Onde há fumaça há fogo”. O
velho ditado não tem efeito nas igrejas.
O
que diferencia o evangélico que domina as estatísticas da população brasileira
religiosa? Distante do rigor moral do falecido protestantismo de missões, o
novo evangélico reproduz a sociedade brasileira em suas piores características.
O Brasil é uma festa de frouxidão ética. Pragmaticamente liberto do fundamento
que “condena ao inferno”, a salvação pode ser comprada com a oferta no altar, e
o evangélico tende a eleger a corrupção e o oportunismo político como “virtude”
ou resultado de bem-aventurança.
Não
importam os cultos, em todas as formas vigentes no Brasil a corrupção
consentida vigora entre nós. Para o antropólogo, envolvido no estudo das
culturas e tradições populares, Pedro Malazartes e Macunaíma são interessantes
como protótipos culturais, engendrados para explicar a alma brasileira. São personagens
aéticos, oportunistas, espertalhões, capazes de adaptarem-se e dar jeito em
tudo, devorando princípios em antropofagia explícita. Ambiguidade? Aí está a
palavra que melhor define a sociedade brasileira. Evangélicos também entram na
farra e se divertem muito, ao que parece.
A
ambiguidade não é privilégio de ninguém. E nesse caso não se pode culpar o
catolicismo de frouxidão moral, superstição. Nem a religiosidade popular, que a
maioria cultiva, trazida na bagagem cultural ibérica ou lusitana, ou da África,
dos terreiros e tambores candobleístas ou umbandistas; ou no tum-tum-tum
rítmico da macumba. Evangélicos, católicos, espíritas kardecistas e
afro-religiosos, brasileiros, nunca fomos tão iguais. A farra dura o ano
inteiro, fazendo inveja ao Carnaval. E salve-se quem puder.
É
pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor do livro “O Dragão que
Habita em Nós” (2010).
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