domingo, 30 de agosto de 2009

5º centenário do nascimento do reformador João Calvino


No dia 10 de julho de 2009 transcorreu o 5º centenário do nascimento do reformador João Calvino. Em Genebra e ao redor do mundo essa data está sendo comemorada com a realização de inúmeras conferências, exposições e lançamentos de livros. Cinco séculos após o seu natalício, Calvino continua sendo um dos homens mais influentes e discutidos da história mundial. Ninguém que escreva sobre religião, teologia, economia e política pode ignorar seu impacto e suas contribuições. Ele foi, ao lado de Martinho Lutero, o líder de maior destaque de um dos movimentos mais marcantes da moderna história ocidental -- a Reforma Protestante. Vale a pena conhecer um pouco da sua história, ideias e legado para as gerações futuras.

Trajetória inicial
João Calvino nasceu em 10 de julho de 1509 na pequena Noyon, no nordeste da França. Dotado de uma inteligência privilegiada, aos 14 anos deixou sua cidade para estudar na Universidade de Paris. Nessa época estavam em curso o Renascimento e o Humanismo, e ele abraçou os interesses desses movimentos. Dedicou-se ao estudo dos idiomas e dos autores clássicos, bem como da teologia e dos Pais da Igreja. Por algum tempo, realizou estudos jurídicos nas cidades de Orléans e Bourges. Em 1531, veio a lume sua primeira obra publicada, um tratado sobre o antigo filósofo estoico Sêneca.

Em 1533 ocorreu um evento singular, embora desconhecido em seus detalhes -- a conversão do jovem intelectual à fé evangélica. Calvino conhecia as ideias de Lutero e tinha parentes e amigos que eram adeptos do protestantismo. Todavia, o fator mais decisivo para sua conversão parece ter sido o contato direto com as Escrituras. Seu primeiro texto publicado como adepto da nova fé foi o prefácio de uma tradução francesa do Novo Testamento feita por seu primo Roberto Olivétan. Em 1536, saiu do prelo aquela que se tornaria sua obra mais importante “Instituição da Religião Cristã”, popularmente conhecida como “Institutas”. Era uma espécie de manual para o estudo da Bíblia.

Nesse mesmo ano, a vida de Calvino começou a ficar ligada à cidade suíça de Genebra. Ele passava de viagem por esse lugar quando o reformador local, Guilherme Farel, o convenceu a ficar e ajudá-lo na obra da Reforma. Fazia poucos meses, os cidadãos de Genebra, reunidos em assembleia pública, haviam decidido abraçar o protestantismo. Por dois anos, Calvino trabalhou ao lado do seu amigo ensinando a Palavra de Deus e tentando organizar a igreja reformada. Todavia, os dois líderes entraram em choque com as autoridades civis, que se sentiam no direito de intervir na vida religiosa da cidade, e acabaram expulsos.

Anos decisivos
Com a expulsão, Calvino foi para a cidade alemã de Estrasburgo, onde havia uma sólida igreja reformada sob a liderança de Martin Butzer. Este havia sido influenciado pelas ideias do iniciador da reforma suíça, o ex-sacerdote Ulrico Zuínglio. Nessa cidade, Calvino teve muitas experiências enriquecedoras: foi pastor de uma pequena igreja de refugiados franceses, lecionou na academia do célebre educador João Sturm e acompanhou Butzer em diversas conferências internacionais. Também escreveu várias obras, entre as quais uma nova edição das “Institutas” (em latim e em francês) e um comentário da Epístola aos Romanos (o primeiro de uma longa série). Nesse ambiente estimulante, suas ideias amadureceram e seus horizontes se ampliaram.

Em setembro de 1541, a convite das autoridades municipais, Calvino regressou definitivamente para Genebra. A situação moral e religiosa da cidade havia se deteriorado e eles concluíram que precisavam do jovem reformador. Durante 23 anos, ele se dedicou de corpo e alma a um grande número de atividades. Aos domingos expunha as Escrituras, livro após livro, na antiga Catedral de Saint Pierre. Durante a semana, ele e seus colegas faziam preleções bíblicas. Continuou escrevendo amplamente: comentários de quase toda a Bíblia, tratados sobre diversos temas, escritos litúrgicos e confessionais e edições ampliadas das “Institutas”.

Além disso, recebia visitantes, correspondia-se com um grande número de pessoas, procurava aperfeiçoar a vida da igreja e da comunidade, e mantinha um estreito contato com os governantes civis da cidade, nem sempre simpáticos ao seu programa de reformas. No final da vida, inaugurou a Academia de Genebra (1559), inspirada na sua congênere de Estrasburgo e precursora da atual Universidade de Genebra. Morreu no dia 27 de maio de 1564, com quase 55 anos. Em muitas de suas obras se pode ver um símbolo que sintetiza o alvo predominante de sua vida: um coração sobre uma mão aberta tem ao seu redor as palavras latinas: “Cor meum tibi offero Domine prompte et sincere” -- “O meu coração a ti ofereço, ó Senhor, de modo pronto e sincero”.

Contribuição permanente
Apesar de suas limitações e falhas, reconhecidas por seus simpatizantes, Calvino deixou um legado extremamente valioso em muitos aspectos. Seus contatos pessoais e vasta correspondência promoveram a causa da Reforma em muitas regiões da Europa. Suas ideias tiveram repercussão mais ampla que as de qualquer outro reformador, levando ao surgimento de igrejas protestantes na França, Países Baixos, Leste Europeu e Ilhas Britânicas. Até mesmo o Brasil sentiu os efeitos de suas ações. Na década de 1550, o vice-almirante Nicolas Durand de Villegaignon escreveu a Calvino e à Igreja de Genebra solicitando o envio de reformados para a pequena colônia que havia fundado no Rio de Janeiro -- a França Antártica. Os treze “huguenotes” vindos da Europa realizaram o primeiro culto protestante das Américas (10 de março de 1557), procuraram evangelizar os indígenas e produziram um belíssimo documento -- a “Confissão de Fé da Guanabara”.

Além de sua visão estratégica e do seu trabalho diplomático, Calvino deu outras contribuições singulares à igreja e à sociedade. Ele foi, antes de tudo, um homem plenamente devotado ao estudo e exposição cuidadosa das Escrituras. Para tanto, desenvolveu normas salutares de interpretação (método histórico-gramatical), evitando os extremos que via ao seu redor, como a alegorização ou espiritualização do texto bíblico. É por isso que hoje, tanto tempo mais tarde, seus comentários, preleções e sermões continuam sendo publicados e lidos com interesse. O reformador trouxe também aportes significativos ao campo da teologia pastoral, com sua ênfase na educação cristã, no aconselhamento e na disciplina em moldes bíblicos. Seu conceito de um quádruplo ministério (pastores, mestres, presbíteros e diáconos) tem exercido uma influência benéfica sobre muitas igrejas.

Embora controvertido em alguns pontos, o legado mais rico e duradouro de Calvino é a sua reflexão teológica. Partindo da verdade basilar da soberania de Deus sobre toda a realidade e da ideia conexa de que tudo deve ser feito para a glória de Deus (“soli Deo gloria”), o reformador desenvolveu uma cosmovisão, ou seja, uma concepção abrangente e integrada sobre a vida e o mundo. Se o Deus trino é o Senhor de tudo, então a fé cristã tem implicações para todas as áreas da existência: família, casamento, trabalho, questões sociais, política, cidadania, arte e ciência. Daí as ideias e ações concretas de Calvino em todos esses campos, posteriormente ampliadas por seus herdeiros. Um bom exemplo foi o que aconteceu no âmbito da educação, no qual os calvinistas têm dado uma de suas mais valiosas contribuições à sociedade, por meio da criação de inúmeras escolas e universidades. O pensamento econômico e social calvinista contribuiu para a consolidação de valores e instituições fundamentais do mundo moderno.

Conclusão
Um fenômeno que tem ocorrido nas últimas décadas em muitas igrejas é a redescoberta de Calvino. Não somente um grande número de reformados têm buscado reapropriar-se do seu legado, mas também pessoas e comunidades de outras tradições, inclusive pentecostais. E as razões para isso são claras: o reconhecimento do caráter profundamente bíblico e coerente da teologia calvinista; o fato de ser um sistema doutrinário que dá a Deus o seu legítimo lugar no centro da vida e do culto; a sua solidez testada pelo tempo, em contraste com os modismos teológicos e comportamentais surgidos ao gosto do consumidor. Basta indagar quais dos “ismos” que atualmente pululam nos meios evangélicos ainda merecerão a atenção das pessoas daqui a 500 anos, caso o mundo chegue até lá.

Calvino não foi um autor inspirado no mesmo sentido que os autores bíblicos, nem suas ideias são perfeitas e infalíveis. Todavia, ele foi um dos melhores mestres que Deus deu à sua igreja nos últimos séculos. Como afirmou a autora Thea Van Halsema, concluindo uma biografia do reformador: “As ideias e obras do homem de Genebra continuam poderosamente vivas através dos séculos. Inspiradas pela Palavra viva, elas penetraram em todo o mundo cristão. Por intermédio delas o pregador de Saint Pierre tem ensinado e moldado a igreja de Cristo. Ele tem falado nas vidas de homens e de nações”.


Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e “Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil”.
asdm@mackenzie.com.br

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